quinta-feira, setembro 14, 2006

Viagem

A trovoada já não se ouvia. Os clarões que rasgavam o céu já tinham desaparecido. Ela ia sentada no carro, observando a chuva. Deu por si a fixar as gotas que escorriam pelo vidro da janela. As gotas caíam rápidas e algumas acabavam a sua curta vida espalmadas numa janela de um carro qualquer (saberiam elas o que era um carro, o que era o mundo dos humanos?), dizendo as suas últimas preces nos últimos momentos de vida, enquanto escorriam pelo vidro.
Ela deixou a mente deslisar para longe. Passaram-lhe pelo pensamento os seus dois últimos Verões e recordou-se da sua viagem pelo oceano sem fim, o rapaz de olhos verdes e costas largas; uma tenda e um grupo de novos amigos; o vizinho e o outro vizinho, o corpo moreno e os olhos amarelos. Ao mesmo tempo que a sua mente rebuscava os seus velhos tesouros, ela ouvia e cantava "I'm walking away from the troubles in my life, I'm walking away oh to find a better day". A música fazia-lhe todo o sentido e era isso mesmo que ela desejava fazer, mas ao deixar o seu pensamento repousar sobre assuntos antigos não estaria ela a fazer precisamente o contrário? Ela recordava-se bem do que tinha sofrido o ano passado.
Então, deixou que os sonhos que ela tinha para este Verão lhe inundassem a cabeça. Nesses sonhos ela não pedia nada de transcendente, eram apenas sonhos de uma adolescente, de uma rapariga que queria ser feliz. Subitamente, todos esses sonhos lhe pareceram impossíveis de concretizar, talvez pela música que agora enchia o carro. Aquela música fazia-a lembrar aquilo de que ela fugira. Mas naquele momento nada lhe parecia tão terrível e odiável como ela se lembrava. Talvez ela tivesse apenas uma necessidade de se afastar.
Abandonou aqueles pensamentos complexos e voltou a mergulhar no seu mundo de ilusão. Momentos mais tarde, ela despertou do seu transe como que de repente. Então, o mundo que a rodeava pareceu-lhe sinistramente estranho.